(para Guida Zerôncio, Eva Barros e Sueleide Suassuna)
Não se trata da prática notarial nem dos traslados cartoriais. Muito menos da prática burocrática, seja das justificativas ou dos requerimentos. Não. Isso aí não é escritura, na dureza do escrever, ou na arte de tentar substituir o ruído sonoro dos fonemas.
Trato aqui da escritura doída a que se referiu Clarice Lispector. “Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura”.
Em Clarice a dureza da escrita não era dificuldade na criação. Era a impossibilidade de espantar a dor íntima que fluía intensa no texto tenso.
De sua terra, na distante Ucrânia, dizia ela nunca ter posto os pés, nem para sair, posto que o fizera ainda no colo. E se fez recifense de pátria adotiva. Ao passar por Natal registrou: “Essa cidadezinha sem caráter”. De Brasília: “Uma prisão a céu aberto”.
Num veraneio de Muriú, Guida Zerôncio preparava a pós-graduação com base na obra de Clarice. Lacan e a ucraniana roubaram a cena naqueles dias. Até Omar Guerreiro, desligado da literatura, mas muito inteligente, fazia citações de “A Hora da Estrela” e “Perto do Coração Selvagem”.
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. Se há um arquétipo que ateste a conceituação de Lacan sobre a fotografia do inconsciente que o texto produz, esse modelo é Clarice. E na poesia, Zila Mamede.
Em Graciliano Ramos a dureza tinha duas dimensões restritivas. A restrição humana do Sertão e a necessidade de enxugar a linguagem. Na sua obra mais popular, ele depenou até o título. Retirou a grandeza substantiva de “O Mundo Coberto de Penas” para a escassez adjetiva de “Vidas Secas”.
Guimarães Rosa plagiou de garimpo o som vocálico das andanças, na voz dos modelos eleitos por seus ouvidos de nhambu. “Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que fui o primeiro que cri”.
Ao seguir essas veredas, o moçambicano Mia Couto confirmou Lacan: “O tiro certeiro sempre carrega algo de quem dispara”.
O autor fotografa o texto, mas é o texto quem o revela. Quando a escrita for apenas palavras postas, sem o condão da “dura escritura”, o texto será um daguerreótipo com a lente tapada. A revelação revelar-se-á uma mancha escura. Uma coisa é escrever. Outra é redigir.
“Na várzea grande do Capibaribe, durante o mês de Agosto, reúnem-se em Congresso todos os ventos do mundo”. Joaquim Cardozo, mestre do cálculo matemático e da poesia aritmética. Dizia ter vindo para uma estação de águas nos olhos da paixão.
Mário Quintana, que a Academia de Letras rejeitou, foi bem maior do que a imortalidade das pompas infantis, cujas rimas das crianças foram as primeiras inspirações do poeta. “Procurando os seus guardados no fundo de uns baús inexistentes”.
É isso. Uma coisa é escrever, outra é redigir.
Oi, meu amigo, muito obrigada!
Gostei muito deste artigo onde põe dois extremos da escrita. A burocrática em seu grau máximo de denotação e a poética onde o autor explora a conotacão das palavras.
Você aponta a musicalidade dos fonemas enquanto recurso favorecedor da polissemia das palavras, seja em Guimarães ou Quintana, quando este aponta poesia nas rimas das crianças. Então lembro Clarice, que se comovia também com o Tatibitate do balbucio infantil, no esforço para o duro dizer correspondente ao duro escrever do poeta.
É sim, também, a arte da escrita, o " tentar substituir o ruído sonoro dos fonemas" nestes embriões de Lingua. Nestas substituições, lembro Lacan, há o recalque dos sons substituídos abrigadores dos fragmentos de se…