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Esconderijo de silêncios (III)

Atualizado: 22 de mar.


Em Januária não existem segredos, silêncios há. E se por hábito ou acaso, nunca se sabe, um silêncio cai na teia que o espera, ocorre sempre ao esconder-se do sol.

Tem sido assim, na monotonia diária dos viventes de Januária.


Seu Ramiro chegou por essas bandas há muito tempo. Sem fazer amizades, mas tratando com polidez qualquer um com quem tratasse. Comprou uma casa velha, incluindo um terreno amplo, nos arredores do lugar. Fez reforma, deixando a moradia com boa apresentação. Ele e sua filha, que também vivia isolada.


Durante os dias, pouco se via movimento por lá. Seu Ramiro saía pra pescar ou caçar, vez ou outra. Uma mulher, viúva, que morava perto deles tentou e conseguiu, na ausência do pai, aproximar-se da filha. Ao entrar na casa percebeu que não havia rádio nem televisão. Com o passar do tempo conquistou o afeto da jovem moça. Ficou sabendo que seu Ramiro não queria contato com o mundo exterior, nem por meio eletrônico. Televisão, rádio, telefone, nada.


Com essa amizade, Mayra aproveitava a ausência do pai para ver televisão na casa da viúva. Só que o fazia da janela, onde se debruçava pra divertir-se com novelas. Da posição em que estava podia ver de longe a aproximação de seu Ramiro. Dona Célia, a viúva, pôs a tevê num jeito que facilitava o acesso à jovem amiga.


Todo fim de mês, seu Ramiro viajava a Fortaleza, capital do Ceará, religiosamente. De lá trazia perfumes, roupas para Mayra, e apetrechos de caça e pesca. Rotina certa e repetida. Nesses dias, Mayra via televisão no conforto de um sofá.


Até que, numa dessas viagens, seu Ramiro não voltou. Ou melhor, voltou de madrugada, pegou dinheiro e documentos num cofre que tinha em casa, disse à filha que daria notícias. E antes do sol nascer, partiu. No mesmo táxi que o trouxera. Noticias nunca chegaram. Isto é, de seu Ramiro para Mayra. Sobre ele chegaram notícias aos borbotões.


Apareceu um grupo de tevê, em Januária. Montaram os equipamentos no terreiro da casa onde agora estava sozinha a filha de seu Ramiro. Ela foi informada dos fatos. E surpreendentemente ela era portadora de silêncios que deixaram todos tontos. Primeiro, não era filha de seu Ramiro. Fora tirada por ele de um grupo de ciganos, acampados em Pocinhos, cidade próxima de Campina Grande, Paraíba, e de lá trazida para Januária. Tinha apenas quatorze anos. Era mulher, e não filha de seu Ramiro. Fora comprada, ou trocada. Mas, ao contar, não dizia isso. "Cigano não vende nem compra, cigano troca. Eu fui trocada por dinheiros". Era o grupo do cigano Honorato.


E Ramiro? Sumira por quê? Foi silêncio morto de história cabeluda. Um investigador angolano, ajudado por um jornalista português, fez amizade, em Fortaleza, com um professor universitário que era especialista nas lutas libertárias da África contra a exploração europeia.


Houve tempos em que rastros se faziam pelos pés no chão. Depois, rastreava-se por ondas de telégrafos, rádios e televisão. Hoje, rastros se fazem sem tocar em nada. Moveu-se, tem rastro. Se pensar alto, também. Vinham cercando seu Ramiro, nas suas idas a Fortaleza, onde ele sacava a pensão vitalícia dos mercenários. Quem fora ele? Muita coisa, todas ruins. Mercenário de exércitos clandestinos destacados na África. Angola, Moçambique, Serra Leoa, Cabo Verde.


Não se chamava Ramiro. Era Benito. Filho de pai italiano com mãe brasileira. Voltou para o Brasil e integrou-se em grupos do CCC, (Comando de caça aos Comunistas) para perseguir, prender e matar subversivos. Operários ou estudantes que faziam oposição à Ditadura. Fez amizade com um torturador brasileiro, major do Exército, de codinome Índio, citado no Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. Esse Índio foi quem torturou o escritor Paulo Coelho. Silêncio abatido, Januária amanhece como todos os dias. Enganando o sol e zombando da sua claridade. Porém, nem o silêncio evita rastros.


Mayra não se chamava Mayra. Era Whita, divindade cigana do amor. Conseguiu com os repórteres que a levassem de volta para Campina Grande, onde morava um irmão seu, de nome Stívan, que largara o bando e se casara com uma paraibana. Ainda demora o por do sol, com outro silêncio na espreita.









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