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Esconderijo de silêncios (V)


A chegada de novo pároco em Januária atiçou a curiosidade noturna dos habitantes. O que houvera de fato? O sacristão segurava-se na promessa feita ao padre Salomão. O novo padre, jovem, foi alvo de assédios e bajulações. Desde aquele episódio do "pastor" envolvido em falcatruas e outras sujeiras, a igreja católica de Januária havia recuperado prestígio e angariado novos praticantes.


Agora, era a igreja romana que se via no enrolado de um silêncio. Assim, no singular, como gostava Saramago. O que houvera?


Na madrugada daquele dia, uma semana após a chegado do padre Thiago, a pensão de dona Olívia recebe dois forasteiros. Dois rapazes e uma moça portando vários equipamentos de filmagens e fotos. Máquinas e tripés. Januária amanhece alvoroçada. Ao chegarem à igreja matriz, os visitantes se apresentaram ao padre. Fariam uma reportagem sobre o padre Salomão, Antecessor do jovem pároco. Ou melhor, uma matéria sobre a vida do padre destituído naquela localidade. Posto que, sobre o próprio padre Salomão, eles é que sabiam das coisas que Januária

desconhecia.


Ouvindo a explicação dos forasteiros ao padre Thiago, o sacristão resolveu contar o que sabia. Pois fora superficialmente informado por aquela comissão que viera buscar o velho padre. Tudo girava em torno do "segredo" vazado da confissão.


De tempos antigos, anos de chumbo, o padre Salomão fora capelão do Regimento de Infantaria do Exército, em Recife. E nessa condição, prestara serviços inconfessáveis aos órgãos de repressão. Dentre esses préstimos, o uso do confessionário para obter informações que repassava aos policiais, nos "inquéritos" da repressão política. Presos políticos, sob tortura, muitos deles católicos, prestavam-se "ao conforto" do confessionário. Confessor? Padre Salomão.


Como fora desmascarado comprovadamente? Conto. Um seminarista de São Paulo, preso juntamente com frades beneditinos, foi transferido para Recife, por ter sido citado num inquérito ali instaurado. Corria o boato das suspeitas sobre o confessor capelão. O seminarista, ardilosamente, pede para se confessar. E na confissão, conta ao padre Salomão que participara de uma queima de canavial, em Nazaré da Mata, nominando mês, dia, horas. Ele sabia do fato e o fato ocorrera. Colocou-se na cena do ato. Não deu outra. O padre repassa a informação. O seminarista é interrogado sobre aquele ato terrorista, apanha pra confessar aos torturadores. Informa, contudo, que era impossível sua participação naquele dia, daquele mês, pois estava preso em São Paulo. Confrontada a informação, atestou-se que era impossível ele estar em São Paulo e Recife no mesmo dia. Ubiquidade anulada por si mesma.


Porém, nem os investigadores e muito menos o padre queriam a publicidade da desmoralização. Retiram o seminarista daquele inquérito, mantendo-o no outro, e transferem o padre Salomão pros cafundós do Judas. Onde? Januária. Esconderijo de silêncios.



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