Dona Zuleide quase não fala, cumprimenta quem lhe dá as horas, sorri e volta para o livro que lê. Não sei os outros, mas tive a curiosidade de observar o livro. Descobri que não é o livro. De dois em dois dias, o livro é sempre outro. Dona Zuleide é uma leitora permanente. Vejo disfarçadamente que ela gosta de novelas policiais, biografias de filósofos ou pensadores, e mais raramente romances de costumes.
Ela se veste com simplicidade e elegância. Nunca desce do seu Flat sem o cuidado da maquiagem sutil, suave, sem exagero. Sempre com um lenço de seda guarnecendo os ombros, que desce após um laço enfeitando o busto. E da blusa derrama-se um branco linho, em renda debruada.
Aqui tem de tudo. De musicista, advogado, militares da guarda nacional, coronel da policia, aposentados, jornalista, comerciantes, médico, fazendeiro. Somados aos servidores, da manutenção, da administração e camareiras. Tudo
E onde tem de tudo tem opinião. E como sói, divergentes. Em futebol, meio sem briga, pois os campeonatos estão em recesso. Aí, pra manter o hábito, a divergência resiste na política.
A discussão rolava solta sobre a última reunião do ministério. Uns escrachando Bolsonaro e seus acólitos pelos palavrões e outros justificando os palavrões como coisa natural. Uma patifaria, diziam uns. Coisa normal numa reunião privada, rebatiam outros.
Num canto, Dona Zuleide lia. Vez ou outra levantava a vista, fazia um gesto de desagrado e voltava ao livro. Teria saído sem falar, não fosse provocada. Mas o musicista provocou: "Dona Zuleide, o que achou das imoralidades"? Ela perguntou, "que imoralidades, meu filho"? "Os palavrões na reunião do governo federal, a senhora num viu não"? Ela fechou o Cândido de Voltaire, levantou-se pra sair e respondeu: "Vi a reunião todinha, mas não houve imoralidades nos palavrões não. Só vi uma imoralidade". Ao começar a sair, alguém cobrou: "Só uma, qual"? Ela respondeu: "Só uma. Duas horas de um governo reunido, com um bando de malucos, sem um minuto para cuidar de administração, de segurança pública, saúde pública, educação pública, economia. Nada. Os palavrões salvaram aquela coisa. A reunião é que foi a grande imoralidade, não os palavrões".
Saiu lentamente, após matar todos os argumentos.
Perfeito e impecável texto! Tão perfeito que a gente sente dificuldade em acrescentar mais alguma coisa.